quinta-feira, outubro 30, 2003

IMPRESSÕES 4

Flaneur

Sou um fantasma que anda pela rua sem ser visto. A menina, com pudor, olha pra baixo. O rapaz, passo firme, olha por cima do meu ombro, com receio de ser chamado de viado se encarar outro homem nos olhos. Sorrio para uma garota, quinze aninhos, achando que tenho a idade dela. Aprecio suas curvas nascentes, seios de pêra, coxas queimadas pelo sol do verão e torneadas pelo primeiro mês de academia. Olho para ela jogando charme, esquecendo que não tenho mais a idade dela, mas sim o dobro, e seria preso se a tivesse na cama.

Sou um velho fantasma, transparente, amorfo, que caminha pela grande cidade desapercebido, esbarrando em ombros alheios, que nem ao menos se viram para me xingar, aceitam, tem medo de perder tempo, o seu tempo, a sua vida, que passa, sem nada alcançarem, se é que alguma coisa precisasse ser alcançada de fato. Sigo andando, olhando adolescentes, esbarrando em executivos, me desculpando para o silêncio, sem sentir frio ou calor, andando.

sexta-feira, outubro 24, 2003

IMPRESSÕES 3

Aplausos

O artista termina seu show em praça pública e colhe os aplausos. Graúdos, discretos, condescendentes, efusivos. Pega todos e coloca dentro do seu chapéu panamá. Mas pára, irritado, ao ver que alguém não lhe aplaude. Como ousa, pergunta. Quem és tu, um apenas na multidão, que não me aplaude? O silêncio lhe responde que é apenas uma estátua. Que acorda de seu sono de anos, dá as costas para o artista e sai andando. É a vez da multidão aplaudir messianicamente a estátua. Ao artista, resta a solidão. Eterno incompreendido.

sábado, outubro 18, 2003

IMPRESSÕES 2

Vida de Atleta

Os seis anos de treinamento.
As dores no ombro, a torção no joelho.
A pressão da família, da técnica.
O impulso decisivo, a corrida derradeira.
O salto sobre o cavalo, a dupla cambalhota carpada.
Os pés paralelos, o tronco ereto.
Aplausos, a nota 9,725.
O 2º lugar, o choro.
Finalmente, uma vida normal.

quinta-feira, outubro 16, 2003

IMPRESSÕES 1

Devota leitora

Segura a Bíblia com a mão direita espalmada por trás da capa. Murmura cada palavra lida como uma prece, sem produzir nenhum ruído perceptível. Observo-a da fileira de trás, na diagonal, e sorvo cada palavra lida, tremida do lábio superior, contato da língua com os dentes. O ônibus balança, a prece cessa por alguns segundos e olho devotamente para os seios da menina que comungam.