quarta-feira, novembro 03, 2004

O Rio está na praia. Da janela do quarto vejo apenas o silêncio. E no excesso de poesia de uma paisagem parada e quente de um morro que sua, invejo os passarinhos que saltam do parapeito do vizinho e vão olhar a vida de perto.

Com esforço minha imaginação alcança ondas que arrebentam em espumas brancas e rostos felizes. Falta o barulho o cheiro o sol, que se escondem na realidade de 35 graus de um prédio de paredes de concreto.

segunda-feira, março 29, 2004

Enchente

Recebeu a notícia da morte do marido pelo telefone. Câncer. Fechou os olhos sem força, abaixou a cabeça, amoleceu os músculos do rosto. Os sulcos da idade à mostra, talhados como cortes na madeira de casca velha.

A neta perguntou para a vó:

- Que houve?

Ela abriu os olhos e toda a tristeza desceu rápido, com a força das águas presas durante anos por uma parede de represa que finalmente cedeu:

- Seu avô foi para o céu.

sábado, março 13, 2004

Berrei sua presença


Ela falou que iria me deixar, e emudeci. Luana disse que não agüentava meu jeito, olhares reprovadores, longos silenciosos misteriosos e chorou. Eu calei. Limpou a lágrima com raiva, como se não fosse permitido derramá-la, era ela quem dizia adeus. Passou o punho, daquela cor amarelada, um desbotamento espontâneo, sobre os olhos castanhos e disse o derradeiro tchau. Fiz que sim com a cabeça, atordoado, jamais esperava que ela me deixasse. A postura grave, o olhar atônito, calado, consentindo. Luana bateu a porta e comecei a chorar, num espasmo alto, soluçar no peito, engasgar futuro, de cinco minutos de choro. Gritei seu nome. Alto. Berrei sua presença. Lá embaixo alguém buzinou, outro amolou a faca, fingindo não escutar meu apelo. Barulhos normais; nem o silêncio me respondeu. Entendi sua solidão.

quarta-feira, março 03, 2004

Cronologia de um suicida confesso


Aos seis anos escondeu-se debaixo da cadeira, na varanda, para ver o desespero da mãe ao achar que ele havia se jogado.

Aos dez, caiu do penhasco vinte sete vezes seguidas, de propósito, jogando a última fase de Mario Bross.

Aos 16, numa terça-feira chuvosa, entrou em coma alcoólico depois de beber duas garrafas de whisky do pai. Acordou, no hospital, vomitando e sorrindo.

Aos 19, a mãe, depois de muito relutar, deu um carro para ele. Na mesma noite, o Gol estava num poste do Aterro. Quebrou o nariz e dois dentes da frente.

Aos 22, o pai morreu ao tomar três viagras e ter uma parada cardíaca. Ele tomou cinco, e teve a ereção mais longa de sua vida.

Aos 24, engasgou com uma ervilha. E não morreu.

terça-feira, dezembro 16, 2003

IMPRESSÕES 6

então você acorda e não me vê. Levanta e vem correndo, cambaleante, esbarrando nas paredes, e me encontra na sala, lendo um livro em silêncio, deitado no sofá. Me olha, sorri, corre para o meu peito, fecha os olhos e escuta que ele está batendo apressado, fazendo companhia ao seu.

Você se aninha no meu peito, me empurra para o canto do sofá para ganhar espaço num abraço, entrelaçar de pernas, esquentar dos pés. Abre seus olhos verdes e negros, beija minha boca e sente o gosto forte de café.

sexta-feira, novembro 07, 2003

Diálogos 1 - Sig-nós


Um casal que se conheceu há duas horas troca beijos e juras de amor:

- Isso é bem coisa de pisciano.
- O que é coisa de pisciano?
- Se apaixonar sempre que conhece uma pessoa nova e achar que ela é perfeita.
- Mas eu também sou pisciano.
(os olhos dela brilharam)
(ele não conseguiu segurar o sorriso da perfeição)
- Mas não acredito nesse papo de signos.
(os olhos dela apagaram)
- Me dá seu celular.
(e apagou o número que colocara na memória 12 minutos antes)
- Apagou seu número, né?
(ela dissimulou)
- Já decorei o número de qualquer jeito. Posso ligar?
(ela olhou espantada)
- Você não é pisciano. É leonino. Só pode ser!
(ele olhando o decote dela)
- Combina?
- Lógico!
- Como você adivinhou?

quinta-feira, outubro 30, 2003

IMPRESSÕES 4

Flaneur

Sou um fantasma que anda pela rua sem ser visto. A menina, com pudor, olha pra baixo. O rapaz, passo firme, olha por cima do meu ombro, com receio de ser chamado de viado se encarar outro homem nos olhos. Sorrio para uma garota, quinze aninhos, achando que tenho a idade dela. Aprecio suas curvas nascentes, seios de pêra, coxas queimadas pelo sol do verão e torneadas pelo primeiro mês de academia. Olho para ela jogando charme, esquecendo que não tenho mais a idade dela, mas sim o dobro, e seria preso se a tivesse na cama.

Sou um velho fantasma, transparente, amorfo, que caminha pela grande cidade desapercebido, esbarrando em ombros alheios, que nem ao menos se viram para me xingar, aceitam, tem medo de perder tempo, o seu tempo, a sua vida, que passa, sem nada alcançarem, se é que alguma coisa precisasse ser alcançada de fato. Sigo andando, olhando adolescentes, esbarrando em executivos, me desculpando para o silêncio, sem sentir frio ou calor, andando.